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VIAGENS ATRIBULADAS

 

SEMEAR COM LÁGRIMAS

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Boa sorte, senhor engenheiro!,diz o pai do Caetano com a mão na maçaneta, sorriso aberto, olhando-o como se ele fosse um herói grego.

     José fez sinal ao homem para esperar.

     Respirou fundo. "Fingir um colapso seria uma cobardia… Por outro lado, virar as costas a tudo, mandar à fava o meu director, o delegado, o Secretário de Estado, o emprego, não seria um acto, esse sim, de verdadeira coragem…? Mas… mas… Herói grego... os heróis caem no campo de batalha, não viram as costas à luta! É a fatalidade de se ser homem…

     O contínuo olhava-o, surpreendido com a espera.

     José mandou­o abrir a porta. E entrou.

     Luz; muita luz; luz de mais. E olhos...: `milhentos´ olhos cravados imediatamente em si, naquela enorme sala, completamente apinhada de gente até atrás e ao lado das cadeiras.

     Presente todo o estado-maior da empresa. À direita do seu director, está um fulano que não conhece e, à esquerda, outro com ar estrangeiro, que presume ser o tal administrador alemão.

     O seu director pega no microfone móvel que lhe é alcançado por uma menina e apresenta José, rápido, prudente, como um simples funcionário técnico da firma…

     E pronto. José é de novo fitado pela multidão.

     Sou a expectativa, o centro deste espírito colectivo. Vou ser julgado… O lado do coração está a doer-me mesmo; e é isso agora o que mais me preocupa. Sinto-me tonto, ai!..."

       De pé, José encosta-se à mesa, à procura de apoio.

     Folheia os apontamentos da exposição.

     Sente a língua colada ao céu da boca: parece que, de súbito, fica sem saliva. Bebo, ou não, um pouco da água em frente de mim?

       José resolve-se a encher o copo. Mas, nervoso que estava, dá depois uma pancada com a garrafa no copo, e este entorna-se, meio de água, por cima dos apontamentos, borrando as primeiras folhas… Ih que suores frios…

    Sem olhar o público, José sacode um pouco os papéis.

    Fita depois a pessoa que presume seja o tal Secretário de Estado, e, meio rouco, sentindo um nó na garganta, que o sufoca, começa:

     — Senhor… Secretário de Estado… senhor… Administrador-Delegado… minhas senhoras e…

     Mas é interrompido por uma porta que bate com estrondo... E vê o pai do Caetano correr para essa porta, atrapalhar-se, entropeçar, cair de joelhos agarrado à moça do microfone, cabeça enfiada no púbis da rapariga

     A sala irrompe em gargalhadas, com o caricato da situação, enquanto a moça sorridente, de ar malicioso, eleva o velho junto do seu corpo...

     O pai do Caetano, coitado, curva­se para José, numa mesura de desculpa. Este sente que está a ver nele o seu velho pai.

     E fita de novo o seu mundo. E faz uma pausa. Muito sério, correndo os olhos por toda aquela gente, capaz de troçar assim dum velho.

    

 

 

ENTRE GIGANTES

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     José pede leite, café descafeinado e torradas. No momento em que o outro passa ao lado do bengaleiro, afere a altura do homem: dá pelo suporte superior.

     Quando o gigante lhe traz o desjejum, José verifica que, todavia, vem também um ovo, presunto, e vários `et ce­teras´. Fica só com o que pediu e manda o resto pelo mesmo caminho; ante a surpresa do outro.

     O leite está é completamente frio, gaita!

     Quando acaba de comer, passa rente ao bengaleiro para comparar alturas. José na sua terra não é de facto considerado baixo, mas o tal suporte está aí a uns vinte e cinco centímetros do alto da sua cabeça. O que quer dizer que o fulano terá mais de dois metros de altura, livra!...”

      E, já na rua, continua a reparar na altura das pessoas. Há muita gente enorme, mais alta e encorpada em relação à média de tamanho dos portugueses. São quase todos assim, e José pergunta­se o que é que fará esta gente para ser tão latagona: Sem desprimor, e talvez mesmo para equilibrar o meu complexo de inferioridade relativa, lembram‑me os dinossauros, que foram acumulando peso e volume e, graças ao seu tamanho, dominaram a Terra; mas que, depois, se viram desadaptados. Por algum motivo os alemães são enormes e os orientais pequeninos (até há preservativos adequados para cada..., que nessa vestimenta não se deve andar de calça curta, nem `largueirona´…).

       Uns são grandes, outros são pequenos em relação aos portugueses… Que, aliás, também já fomos em média bem mais pequenos, segundo parece, pelas camas que nos ficaram dos nobres do passado. Será uma consequência da alimentação? Ou, no caso desta gente de Colónia, o facto de usarem edredões pequenos, que os obrigam a dormir encolhidos, esticando depois de dia?... Não. Fora de brincadeiras, deverá é ser uma questão de raça, apurada ao longo do tempo...

     E, com as mulheres, verifica que é a mesma coisa: na altura e no resto. São umas mulheraças que até assustam, só de se pensar que podem ficar por cima dum homem!…  E, enquanto as portuguesas desviam os olhos, expressão séria, para desencorajar os avanços masculinos, estas latagonas, pelos vistos, enfrentam os olhares atrevidos com ar sobranceiro. Nesta agora, a quem me detenho mais tempo a admirar a envergadura, apanho com um tal olhar de desprezo, que quase me petrifica. Vai servir‑me de emenda. Ao lado desta gente, sou um pigmeu e não estou para que as mulheres me olhem como quem diz: para que é que me serves tu, pequenitates?"

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ENTRE ETARRAS

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     No segundo dia em que se encontrou com a mulher, José começou por fazer com ela uma enorme caminhada depois das seis da tarde. Foi então dedicada à cidade nova, com promessa de ela o levar no dia seguinte ao “Casco Viejo”. Passaram pelo Museu de Belas Artes, o Museu Guggenheim Bilbau, a Plaza Circular, com a estátua de Don Diego López de Haro (o fundador da cidade), a Gran Via.

     Pararam em frente da Igreja de S. Vicente. Aí ela incitou­o a visitá‑la, com o pretexto de observar o seu estilo gótico, mas não quis entrar.

     À saída, José inquiriu:Porque é que não entraste. na igreja, tu? Estou de relações cortadas com Deus… De relações cortadas?

     Não respondeu logo. Olhou o céu.

     — Não entro numa igreja desde o ano em que me morreram, primeiro o marido na prisão depois o meu pai com uma embolia, a seguir a minha mãe de saudades…; e, por último, o meu filhinho com uma meningite galopante…

       Fitou agora o chão, ante o ar compadecido de José. — Quando perdi a criança, achei que era de mais. Numa organização bem feita, os mais novos não morrem primeiro… Esta organização pretensamente divina do Universo é na realidade  uma droga para as contingências humanas.   

     O sol batia ainda nas paredes da igreja. Ela tinha agora um ar triste. Prosseguiu, de olhos húmidos:   

    No mesmo dia em que enterrei o inocente, fui lá à igreja, onde costumava ir todos os domingos, e, cara a cara, descompus o Deus em que depositara tanta fé desde menininha.

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      José elevou a cabeça, levou a mão à cama, tirou `outro Unamuno´, e, sempre de joelhos, abriu, leu ao acaso:

         «Aqui vos deixo minha alma livro,

           homem, mundo verdadeiro.

           Quando vibres todo inteiro

           sou eu, leitor, que em ti vibro»

      Sempre a olhar o livro, José perguntou depois: Amanhã ainda estás no teu período fértil? Sim, de certeza. Então deixa­me amadurecer o assunto mais estas horas. Lê­me hoje o teu Unamuno.

      O que ela aceitou, envolvendo­se na leitura de textos ao acaso, desse príncipe das letras. Com José absorvido naquele conflito mútuo: o persistente entre o anseio e a razão no poeta e, agora, o mesmo em si próprio também.

      Assim continuaram, ele sempre com a cabeça pousada no regaço da mulher, num tempo sem tempo...

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VIAGEM ACIDENTADA PELO BRASIL IMENSO

 

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